No começo era o verbo... pois a linguagem antecede e sucede a existência humana.
- Mariany Gonçalves

- 12 de mar. de 2024
- 2 min de leitura

O luto de uma pessoa próxima me fez pensar o quanto estamos enraizados à palavra.
Lendo Lacan esta semana, lembrei que algumas vezes ele faz referência aos Evangelhos em sua obra e, apesar da distância entre religião e psicanálise, a primordialidade da palavra se destaca em ambas. Apesar de conceitos como "existência" e "Deus" terem sentidos específicos na teoria lacaniana, arrisco dizer que se poderia traçar um paralelo desse fragmento do saber judaico-cristão em relação à dimensão da linguagem, de forma geral, no que diz respeito à ideia de que a palavra antecede (e sucede) a realidade humana.
Quando nascemos, ela já esta aí. Mergulhamos no mundo e somos determinados, até certo ponto, por ela. Da mesma forma, quando partimos desse mundo, a palavra e seus efeitos permanecem vivos. Assim, o corpo biológico morre, mas a palavra permanece. A existência dada a partir da palavra não termina no túmulo, por isso podemos dizer que alguém vive em nossas lembranças ou em nossos corações.
É verdade. Aquele cuja existência se estabeleceu na linguagem, ainda que esteja morto biologicamente, viverá através da palavra nas ideias, nos ditos, nas lembranças, na descendência de cada um. Por isso achei curioso pensar na possibilidade de um paralelo entre a ideia de que a palavra nos precede e a ideia cristã de que, antes de tudo, era o Verbo.
Ainda no livro de João, o Verbo diz: "aquele que crê em mim, ainda que morra, viverá". Fiquei pensando nisso e concluí que talvez faça algum sentido pensar que quem crê na palavra, ou seja, que aposta nela (nas possibilidades infinitas que ela comporta), ainda que morto (biologicamente), viverá (como eco da impossibilidade de destruição na linguagem).
E ainda bem que temos a possibilidade de dar um lugar a essa dor do luto e fazer algo a partir disso que restou, pois a palavra comporta em si a possibilidade de um outro lugar ou sentido, ou a possiblidade, como dizia Manoel de Barros, de delírio:
"No descomeço era o verbo.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá onde a criança diz:
Eu escuto a cor dos passarinhos."
(Manoel de Barros, 1993)



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